domingo, 6 de dezembro de 2009

O desafio

Em fevereiro, quando estava passando o carnaval em Garatucaia, uma praia próxima a Angra dos Reis, no Estado do Rio, fui procurado por Antonio Terra e desafiado a dirigir o espetáculo de sua companhia, a Companhia dos Actores, em Portugal para a primeira Mostra Internacional de Teatro de Oeiras, o MITO.
Oeiras, que este ano comemora seus 250 anos, é um rico e moderno Concelho (município) daquele país e geograficamente até se confunde com Lisboa, por ser território contíguo á capital lusitana. O MITO seria inserido na programação comemorativa.
A Cia. dos Actores vem desenvolvendo um importante trabalho na área cultural e social há mais de cinco anos em Oeiras e a realização de uma mostra internacional de grande amplitude, colocaria o Concelho no circuito internacional de Mostras e Festivais de artes cênicas.
Antonio, que até então tinha dirigido todos os espetáculos da companhia, assumiria a direção do evento e eu ficaria com a responsabilidade de escolher a dramaturgia e dirigir o espetáculo para o MITO.
Conhecemos-nos na realização do espetáculo ”Em Brasa” no Teatro Municipal São Luiz em Lisboa no ano passado, onde atuou como ator.
A Companhia dos Actores, que abrigaria e produziria a Mostra, teria de se apresentar com um trabalho que estivesse ao nível dos convidados. Tarefa nada fácil, pois estariam em Oeiras, disse-me ele, pelo menos dez das maiores companhias brasileiras e portuguesas. Sem pensar muito, topei o desafio.
Logo após o carnaval fui à biblioteca da Furnarte no centro do Rio e depois de ler mais de vinte textos, cheguei finalmente ao “Homem e o Cavalo” de Oswald de Andrade.


Mãos na massa

Em finais de março eu e Tati embarcamos para Portugal alguns dias antes do previsto para assistirmos a entrega do prêmio de Melhor Espetáculo Português de 2008 concedido pela Associação Portuguesa de Críticos ao Teatro O Bando, pelo espetáculo ‘‘SAGA – Uma ópera extravagante”, cuja direção de produção foi da Tati Mendes.
Mal acabou a festa do prêmio, fomos trabalhar com O Bando na realização do espetáculo de comemoração aos trinta e cinco anos da “Revolução dos Cravos”, o “25 de abril”, no Largo do Carmo, em Lisboa, local emblemático da revolta que derrubou a ditadura portuguesa.
Em seguida, Tati foi produzir o espetáculo “O Crucificado” no Bando e eu fui trabalhar na preparação da curadoria do MITO junto com Antonio Terra. Enquanto fazia a adaptação de “O homem e o Cavalo” para teatro (o espetáculo havia sido escrito em 1934 para ser encenado no estádio do Pacaembu em São Paulo, motivo pelo qual talvez tenha ficado inédito), o que me custou quase dois meses de intenso trabalho, fiz também a curadoria da Mostra e para isso tive de assistir (Em DVD) em torno de 86 espetáculos do Brasil , Portugal e África.


Camões no meu caminho

Ainda durante a curadoria, Antonio pediu-me que desenvolvesse uma dramaturgia e consequentemente dirigisse um espetáculo sobre “Camões” para ser realizado no evento “Espírito da Poesia”, também realizado pela Companhia dos Actores e que pelo terceiro ano aconteceria no Parque dos Poetas de Oeiras. Aceitei e mergulhei nas biografias (li de três autores diferentes) e na obra de Luiz de Camões, mais especificamente as “Líricas” e os “Autos”, pois os “Lusíadas” eu já conhecia. Mais um mês de pesquisa, dramaturgia, seleção e preparação de elenco e montagem do espetáculo. Montei todos os diálogos com palavras que constam de sua obra, um verdadeiro jogo de quebra-cabeças.
Decidi realizá-lo fora do parque, no muro frontal da entrada, que transformei num imenso navio ancorado no cais de Lisboa pronto para partir para as índias. Quanto a dramaturgia, optei em mostrar um “Camões” nunca dantes mostrado por aquelas bandas: Beberrão, briguento (tinha o apelido de Trincafortes), freqüentador assíduo de um bordel de terceira no Rossio em Lisboa, cujo nome era “Mal cozinhado” e que morreu na mais absoluta miséria, tendo vivido os últimos anos á custa de esmolas. O Camões “fidalgo” como sempre foi mostrado, não descobri em suas biografias. Optei pelo lado “B” e não menos verdadeiro da história. Assumi o risco. O público aprovou. Foi ótimo!


O homem, o cavalo e outros bichos

Acabado o “Espírito da Poesia”, voltei-me com toda força para a montagem do espetáculo da Companhia e para o MITO. Iniciamos em princípios de junho os ensaios de “O Homem e o Cavalo” no teatro Amélio Rey Colaço em Algés.
Na quinta do Bando, em Palmela, o projeto de “Três meses, Seis espetáculos” e a produção do “Crucificado” estava em pleno vapor e eu, sempre que podia, dava uma mãozinha pra Tati.
Nos primeiros sábados de cada mês, O Bando realiza na sua sede em Palmela, um dia de convívio, com almoço, bate-papos e alguma oficina relâmpago de “inutilidades”. No primeiro sábado de julho, Tati ofereceu aos amigos e ao elenco do “Em Brasa”, em comemoração ao primeiro aniversário do espetáculo, uma feijoada acompanhada de um “work-shop” de Caipirinha e Cigarrinho-de-palha (mais inútil, impossível!), que ministrei. No final do dia ainda fizemos o espetáculo “Cafundó”. O sábado inteiro foi um grande sucesso!..
Na semana seguinte João Brites decidiu realizar o “Pino do Verão” em Palmela, no último domingo do mês (26/07), com produção da Tati e me convidou para integrar o elenco. Aceitei.
Nessa mesma semana, Fui com Antonio Terra conhecer os barracões da antiga Fundição de Oeiras e pirei!... São cinco ou seis galpões de aproximadamente 2.000m2 (dois mil metros quadrados) cada e que estariam à disposição do MITO. Voltei pra casa com mil idéias na cabeça. Comecei a desenvolver uma dramaturgia cujo texto tinha o título de “Estranha Delicadeza”, para ser montado dentro de um desses galpões. Quando apresentei ao grupo minha idéia, eles chaparam!... Mas nos dias seguintes, meu projeto naufragou no orçamento, que ficaria muito além das possibilidades da Cia. Voltamos ao “Homem e o Cavalo”. Uma semana antes do Pino do Verão em Palmela, onde eu estaria como ator, chegou a notícia de que não poderíamos montar “O Homem e o Cavalo”. A família do autor (que deve ter se virado na tumba cem vezes) exigia que um membro da mesma fosse a Portugal para acompanhar toda a dramaturgia, montagem e produção do espetáculo, ou seja, um “sensor” (vade-retro) dentro do trabalho.
Essa notícia me pegou em pleno ensaio numa quinta-feira à 22 horas. Dispensei os ensaios da sexta e do sábado e prometi ao grupo que na segunda estaria lá com um texto novo. Fui para Palmela disposto a convencer João Brites a me dispensar do “Pino do verão”, pra que eu pudesse me dedicar à nova dramaturgia: “Nem pensar”, disse João: “Conto com você no elenco”... Mas consegui que me dispensasse de uma pescaria em alto-mar já tratada com um grupo de amigos para o domingo, pra tentar encontrar alguma idéia que valesse á pena.


Eu, niilista?

Na manhã de 17 de julho sentei-me à frente do meu computador e pensei: E agora?.. Já tinha um título (sempre começo por aí), que havia me batido na cabeça, na volta pra casa depois do último ensaio enquanto passava sobre o Tejo na Ponte 25 de Abril, saindo de Lisboa em direção à Palmela. Então digitei “Viver é Raso”. Poucas pessoas sabem desse segredo, mas pra mim, isso já é meio caminho andado.
Passei em revista na memória todos os 116 espetáculos que havia assistido na curadoria e pensei: Que tal uma fugir?...Escapar?...
E foi assim, mesmo interrompendo no domingo à noite para comer uns peixinhos assados que o João Brites e filhos trouxeram da pescaria em alto-mar e na segunda para ensaios do “Pino”, que às 18 horas de terça-feira 21 de julho, no Teatro Amélia Rey Colaço em Algés, apresentei à Companhia dos Actores a minha nova dramaturgia. Antes, é claro, li alguns textos sobre o “niilismo”, uma vez que o João me havia dito, entre um peixe e outro do domingo, que eu andava muito “niilista”. Ele já havia percebido isso em “Horizontem”, meu último filme, e agora nesse texto. Eu, niilista???....Tive que revisitar Duchamp, Magritte e Nietzsche. Cheguei à conclusão que estava mesmo, mas como não doía, deixei como estava!....
O grupo amou o texto e comprou de pronto a idéia!... Ufa!!!!...


Fazendo o Pino

Deixei que lessem o texto, marquei o primeiro ensaio da nova peça para dia 27 de julho e mergulhei de cabeça no “Pino do Verão”. Fiz um dos “vassoureiros” juntamente com Raul Atalaia, Inês Madeira e outras feras. Éramos em torno de trinta atores e atrizes e cantores(as) líricos, cento e vinte músicos de três filarmônicas e um coro de sessenta vozes, todos pendurados sobre “paletes” na encosta íngrime do castelo de Palmela. Que emoção!...Que espetáculo!...Só mesmo nascido da genial cabeça de João Brites, que conseguiu juntar a espetacular música de Jorge Salgueiro aos poemas e Eugenio de Andrade. Com certeza, o maior espetáculo em céu aberto de Portugal.
Fiquei orgulhoso de ter participado como ator, mas muito mais orgulhoso pelo fato de ver um trabalho daquela envergadura ser produzido em menos de quinze dias, com um quarto dos recursos dos anos anteriores e com qualidade muito superior, graças a competência, a seriedade e o talento da Tati Mendes, diretora de produção com capacidade provada em cinema e teatro no Brasil e em Portugal e que agora, consolida definitivamente seu nome no cenário artístico lusitano. Já está contratada para produzir os Pinos dos próximos anos, dentre tantos outros trabalhos.
Nesse evento estreou como ator em Portugal meu sobrinho Diego Borges, (Pobre é quem não tem Jipe e Oitava Cor do Arco-íris) que havia chegado uma semana antes para fazer um estágio na Escola Superior de Teatro de Lisboa, à convite do João Brites. E logo na estréia fez par com Paula Só, reconhecidamente, uma das maiores atrizes portuguesa. Em seguida Diego foi ser meu assistente de direção no espetáculo para o MITO e Tati assumiu a produção.


Mergulho de cabeça

Logo na segunda-feira 27 de julho voltei-me com força total para “Viver é Raso”, com foco absoluto na estréia dia 11 de setembro (que data heim?) no MITO.
Foi um delírio e uma delícia esses quase cinqüenta dias de ensaios. A muitos anos eu não trabalhava num ambiente tão “boa onda” como dizem por lá. Foi muito prazeroso todo o processo que construção e descoberta de cada cena, de cada gesto, de cada voz, graças a um elenco formado de pessoas com grande espírito de equipe, talentosas, e acima de tudo, generosas! Não tivemos um segundo sequer de “stresse” ou de qualquer outro problema que atrapalhasse nosso trabalho. Pelo contrário, nos divertimos tanto, que muitas vezes tive de parar os ensaios e sairmos para um café, para conseguirmos parar de rir das coisas que fomos descobrindo!... Foi divertidíssimo montar “Viver é Raso”.
Comecei por deletar da minha cabeça tudo que já havia feito ou visto em teatro até então e partir para um mergulho no abismo. Limpar o didatismo, expurgar juízos de valores, apostar no silêncio como recurso cênico e percorrer todas as contramãos das encenações convencionais, tanto no texto como na forma de interpretação.
Levar às últimas conseqüências a desconstrução do óbvio e o aniquilamento de intenções representativas. Esvaziar, esvaziar e esvaziar. Tentar alcançar o zero. E se tudo vai pro “não óbvio” acaba ficando óbvio, por isso, vez ou outra batíamos com a cara no muro e escorregávamos pra não deixar pistas ou intencionalmente deixávamos as coisas voltarem ao seu estado natural. Assim, como dançar um tango ou um samba no fio de uma navalha, fomos percorrendo caminhos que não conhecíamos e encontrando mais perguntas que respostas. E quando mais confusos e perdidos nos sentíamos, mais claro ficava o fim do túnel. Era como se, pra encontrarmos um rumo, tínhamos necessariamente que nos perder.
Todas as loucuras e elucubrações que eu apresentava ao grupo, eles topavam e aí ficou fácil realizar um espetáculo dessa natureza.
Viver é raso me fez acreditar num teatro possível, que apesar de tantas e tantas convenções, não precisa ser tão velho, tão enferrujado, tão gasto.
Quando à estréia e temporada no MITO, é melhor perguntar pra quem estava do outro lado!...
Porque será que ao final, quando o público já estava totalmente fora do teatro e alguém avisava que haveria um bate-papo com o elenco e direção, mais de 80% das pessoas voltava?....

Viver é raso!... O abismo..........................................................também!!!

Amauri Tangará








Imagens de “VIVER É RASO”
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