quinta-feira, 13 de maio de 2010

Quarenta Anos Hoje

Hoje, 30 de abril de 2010, daqui de Portugal, onde acabo de chegar para mais uma temporada de teatro e cinema, estou comemorando os “quarenta anos” da minha chegada em Tangará da Serra, na amazônia Matogrossense, em cima de um velho caminhão de mudanças vindo do Paraná. Eu, meus pais, meus irmãos e duas mulas velhas sem serventia alguma, únicas remanescentes da tropa com a qual meu pai tocou boiadas pelos sertões do Brasil durante mais de sessenta anos. Ele havia prometido que elas morreriam ao seu lado. Depois de 05 (cinco) dias de viajem e mais de 1.500 kilômetros, com cansaço e poeira até na alma chegamos, a exatas quatro décadas atras, finalmente ao nosso destino.
Tangará era um vilarejo de mais ou menos umas trezentas e poucas casas de tábuas, na sua maioria ainda cobertas de tabuinhas, no meio da selva. Sua única e empoeirada avenida, fazia-me lembrar das cidades do velho oeste americano. A luz era fornecida por um pequeno motor estacionário e água encanada não havia.
Uma pequena e rústica Babel formada de lavradores, pequenos comerciantes e aventureiros de toda sorte em busca de um Eldorado que teria de ser arrancado do chão à custa de muitos calos nas mãos, suor e sangue.
Depois de alguns meses morando numa casa alugada nos arredores do vilarejo, mudamo-nos para um rancho de pau-à-pique e coberto de sapé, no meio da mata na cabeceira do rio Estaca. Dali até o povoado, andávamos numa picada na floresta por mais ou menos oito kilômetros. À cavalo, eu ia todas as noites pra escola. Uma das mãos nas rédeas do animal e a outra pregada num velho revolver calibre 32 de meu pai, com medo de onças e outros bichos. Em finais de 71 retornamos ao vilarejo, por causa da escola minha e de meus irmãos.
Pra animar aquela gente começei a fazer teatro no grupo de Jovens da Igreja e a escrever um jornalzinho no Grêmio Estudantil Cassemiro de Abreu, que havíamos fundado na Escola 29 de Novembro. Nesse jornal chamado " O Grito do Geca", feito num mimiógrafo à alcool, eu copiava charges do Henfil, críticas políticas e notícias que saiam no Pasquim, que pedia para alguém me trazer de Cuiabá.
Ali vivi entre 72 e 73 as agruras das epidemias de malária, tifo e outras doenças tropicais, que misturadas ao envenenamento provocado pelo "agente laranja" que os grande latifúndios usaram para desmatar suas terras, provocaram um dos maiores genocídios da história do Brasil contemporâneo, cuja verdade permanece criminosamente silenciosa e os criminosos impunes. Mas sobrevivemos, nós e Tangará.
Ali pude viver também momentos de extremo lirismo e poesia, de paixões e festas de nunca mais se esquecer. Das noites de serestas à paixão pelo Independente Futebol Clube; Dos banhos e pique-niques no Ararão e Queima-pé às imensas festas no Salão Paroquial; Das chegadas dos ônibus da "Baleia" aos campeonatos de sinuca do Bar do Tiago; Dos programas de calouros no Cine Alvorada aos bailes de carnaval no TTC; Da fanfarra do 29 de novembro aos espetáculos do Grutta...
De criança desprotegida e doente à uma moça deselegante e mal tratada, mas com traços de uma beleza exuberante, Tangará foi varando o tempo até ser hoje essa bela, madura e cativante mulher.
Sempre que me lembro de Tangará, tenho a sensação de estar voltando ao colo da minha mãe ou de estar sentido na boca o gosto do beijo da primeira namorada.
Embora já havia feito algumas incursões em teatro no Paraná e até ganho um festival de poesia na minha cidade natal, Paranavaí, foi em Tangará que realmente me dediquei com mais persistência à arte de escrever. Lembro-me de um poema que fiz por volta de 72 e que se chamava “Tangará cidade-criança”. Alguns de seus versos diziam: “Tangará da Serra é uma criança nascida do útero das matas/Fecundada pelo sangue de muitas mãos calejadas”. Não poderia me esquecer de uma crônica que escrevi no "O Grito do Geca" intitulado: "De como um cacho de banana virou deputado", o que me valeu um revólver na cara do sr. Pedro Rebolo, que só não consumou o ato, porque Antonio Porfírio me socorreu.
Foi dali que cai na estrada um dia com o Grutta – Grupo Teatral de Tangará da Serra. Primeiro rumo as vilas e currutelas vizinhas, depois às cidades, a capital Cuiabá, o Nordeste brasileiro...
Ali nasceram meus filhos e uma imensa vontade de fazer do teatro, meu cavalo.
Quando fui embora em 80, pra não morrer de saudades, levei Tangará comigo, em meu nome.
Hoje, quarenta anos depois, escrevo essa pequena homengem daqui de Palmela – Portugal, na sede do Teatro O Bando. Com certeza, ainda hoje, tomarei um bom vinho alentejano pra comemorar a data. Essa data, que me é muito cara e que me trás à memória paisagens, pessoas, palavras e histórias, haverei de comemorar sempre. Na verdade eu nunca saí de Tangará, porque Tangará nunca saiu de mim.

Palmela – Portugal 30/04/2010

Estética e Povo

Bastante oportuno e profundamente necessário o debate proposto no seminário realizado durante o Festival de Teatro de Alta Floresta. Oportuno porque o momento exige reflexões mais alargadas sobre um tema que parece, por questões que desconheço, ter se tornado um tabú e desaparecido por completo das pautas da nossa grande imprensa. Necessário porque pode produzir confronto de ideias e de valôres, o que tem acontecido com espantosa raridade, fazendo-nos crer que tudo o que acontece à nossa volta é pura normalidade ou casualidade. Tenho a impressão que perdemos o poder da indignação e da contestação e em contrapartida adquirimos como surto ou por osmose, o terrível e nefasto hábito do conformismo tipo "deixa como está pra ver como fica". Por essas e outras razões, espero bem, cheguemos ao confronto. Precisamos de dedos e feridas. Quem sabe assim, saramos um bocado dessa letargia que nos assola. Esse desabafo é só pra tentar um rascunho do que quero expor como minhas idéias sobre o tema proposto. Garanto-lhes que daqui pra frente, guardarei num lugar bem distante e inatingível todos os meu temores e pudores para tratar desse assunto. Se algum de vos quizer atirar uma pedra, proponho que atire logo a montanha toda, assim, vou sentir que o confronto realmente se estabeleceu. Cofesso que é o mínimo que espero.
Não sei quando e nem onde, algum conformista emburrecido criou a frase "gosto não se discute", para dar por encerrado qualquer questionamento sobre estética. Esse dito popular existe para que nos lembremos de respeitar a liberdade e diversidade de escolha. Liberdade e diversidade que defendo a existência com todas minhas unhas e dentes. Ouço esse dito todos os dias e em diferentes sotaques, côres e rítimos. Ouço-o no rádio, na televisão, nas ruas, nas escolas. Leio-o em livros, jornais, revistas e out-doors. Vejo-o exposto na cara das pessoas, nas telas de cinema, nas propagandas e discursos políticos. Mas o que mais me assusta é que não ouço, não leio e não vejo ninguém questioná-lo. E questionar, como bem entendo, não é negar!
Tenho a mais absoluta convicção de que gosto se discute sim. Pelo simples fato de existir bom bosto, mau gosto ou muito pelo contrário. E ainda mais pelo fato de que o mau gosto é fruto de um pocesso de massificaçao imposto por uma indústria que mira essencialmente no emburrecimento de nossa gente. Não é escolha íntima e pessoal. É imposição, domesticação, catequização pura e simples. Um povo devidamente instruido não se conforma ser tratado como gado em curral. Com certeza questionaria quando lhe tentassem impor por força dos modismos da hora e a serviço de um capitalismo nojento – (não aceito o termo "capitalismo selvagem", pois tem muita coisa da selva que me é referência moral e estética da melhor qualidade) - cujo lema é: "quanto mais estúpido e menos seletivo, melhor", toda essas enchurrada de estética podre. Essa é a grande mira da indústria da mediocridade.
Recentemente, durante a pré-conferência do Audiovisual em Brasília, ouvi do nosso ministro da cultura, Juca Ferreira, a seguinte frase: "A mediocridade devia ser crime".
Concordo com ele. Só não sei onde prenderíamos tantos e tão poderosos criminosos.
Eles atuam à solta e sobre o manto da impunidade da palavra "democracia" e se blindam com o manto da liberdade de expressão. A liberdade de expressão só é permitida à quem comanda a indústria da mediocridade e a democracia pertence aos que manipulam a vontade e o gosto do povo. A grande massa só pode exercer aquilo que lhe é imposto, não há o direito de escolha. A televisão, pincipal e poderosa arma de catequisação, está dentro da nossa casa, na nossa cara, no centro da nossa cabeça. Dela, a imensa maioria de nossa gente, extrai mais de 80% dos conhecimentos e informações sobre o mundo e a vida. Quais e de que forma esses conhecimentos chegam às pessoas? Os jornais e revistas de maior tiragem do país pertecem à pessoas ou grupos ligados a partidos políticos, por isso não consegem esconder suas pautas absurdas e criminosamente tedenciosas. As nossas escolas e faculdades, que deveriam ser os óasis nesse deserto, estão mais preocupadas em produzir mão-de-obra barata que cidadões esclarecidos. As igrejas, que hoje proliferam como erva-daninha, não estão preocupadas com as coisas desse mundo, com a felicidade aqui e agora. Domesticam seus "clientes" à abrirem mão de um paraíso possível e palpável em troca de algo que nunca ninguém, em toda história da humanidade, provou existir. E ainda mais: Não pagam impostos, não são processadas por propagandas enganosas e vendem mercadorias que não precisam entregar.
Estamos mesmo no mato sem cachorro, sem espingarda e descalços.
A grande e poderosa mídia nos impinge diáriamente uma infinidade de coisas, produtos e comportamento, totalmente nocivos à nossa saúde física e mental. Nos faz acreditar que seremos infelizes e poderemos morrer se não fizermos uso dessas idéias e mercadorias.
Quero tomar como exemplo raso, a indústria fonográfica. Não é raro vermos nos dias de hoje, uma dessas duplas sertanejas, que a meses atrás ninguém sabia da existência, reunir, dentro de uma universidade, um público de 10, l5 ou 20 mil pessoas para ouvir seus uivos de "dor de corno" onde a mulher é sempre a degenerada infiel. Se nesse mesmo espaço de "ensino superior", se apresentar um espetáculo de um Grupo Galpão, uma Intéprida Trupe ou Piolim de João Pessoa: um show do Borguetinho, do Amandú ou Antonio Nóbrega, tenho a mais absoluta certeza de que o público será composto de meia-dúzia de gatos pingados. Sabem porque? Porque não são os eleitos da mídia. E quem dirige, determina, sacramenta o "gosto" do povo, é ela: A mãe e o pai de todas as "liberdades de escolha". O que vemos todos os dias é um desenfreado e violento processo de degeneração "conduzida" do gosto estético de nossa gente.
Quero, antes de prosseguir esse assunto, deixar bem claro que fui criado ouvindo e ouço até hoje a boa música sertaneja e de raíz. Mas tambem ouço e consumo outras tendências que vão do clássico ao jazz, do samba ao baião, da mpb ao fado. .
Defendo peremptóriamente a existência e difusão de todas as tendências, estilos e rítimos, cuja diversidade em nosso pais é enriquecedora.
Da música às novelas, das notícias aos programas de auditórios, o que vemos é uma única linguagem e tendência estética. É o que se empurra goela abaixo da imensa maioria do nosso povo. Estamos atolados até a testa na lama da mediocridade.
Além dessa arte de consumo fácil que nos é imposta, uma outra e perversa forma de conspiração contra nossa liberdade de escolha, são os noticiários. Hoje já se transmite a "morte ao vivo". Não há noticiários televisivos que não abram com alguma desgraça. Isso é tendencioso. As más notícias são matéria prima dos noticiários. Tem de haver sangue e de preferência, muito sangue! É o que poderíamos nomear de " a estética do terror". Até mesmo nos programas matinais de culinária, abre-se espaço para mostrar cadáveres.
Violência urbana, acidente ou tragédia, no Brasil, a imprensa chega sempre antes da ambulâcia, o reporter, como um vampiro sedento se antecipa ao médico .
Quanto mais desgraças, mas medrosos ficamos. Quanto mais medrosos ficamos, mais nos encolhemos em nossa casa. Quando mais ficamos em casa, mas ligamos a televisão. Quanto mais ligamos a televisão, mais audiência... Essa é a lógica, pura a simples.
Nesse nosso país tão grande há milhares de coisas boas acontecendo. Milhões de pessoas maravilhosas com seus projetos de vida interessantes. Exemplos de solidariedade, de fraternidade, de coragem, que todos os dias acontecem em todos os cantos dessa imensa pátria e como seria bom e importante que todos soubessem. Ha tanta gente interessante, fazendo coisas interessantes e tantos e tantos temas e assuntos que nos ajudariam na nossa melhor compreensão e sentido de nação. Ajudaria na construção de uma auto estima mais elevada e facilitaria a nossa busca pela felicidade, fim por que vale a penas todos os meios.
Mas imaginem vocês um povo cuja auto estima seja elevada.
Imaginaram?
Acham que um povo assim aceitaria qualquer imposição?
Pois é.
Outra simples e pura lógica.
Um povo feliz, de auto estima elevada, contestador, seletivo, varreria desse país a insdustria da mediocridade. Eles morrem de medo de um dia isso acontecer, portanto, todos os minutos das horas, todas as horas do dia, enchem nossa cabeça de vazios, de buracos, de coisas que nos fazem não pensar. E quando algum de nós levanta a voz contra seus projetos, eles, como pit-buls acoados, latem à todo volume a tal da "liberdade de expressão". A deles, é claro!
Durante toda a nossa história republicana, raríssimas vezes tivemos governo com a preocupação de implementar políticas públicas de cultura que atendessem no mínimo dois, dos fundamentais direitos culturais de um povo: Auto-conhecimento e valorização de suas raízes. Tenho acompanhado e participado, atravéz das pré-conferências de cultura, a forma como o poder público federal, tem entendido e vem tratando dessas questões que aqui coloco. A criação dos pontos de cultura, do projetos de valorização da cultura popular, da memória, do resgate, preservação e reciclagem dos valores culturais das comunidades e etnias secularmente desasistidas. Essas comunidades, a partir dessas ações, poderão desenvolver senso crítico, se apoderarem dos conhecimentos empíricos de sua gente e acima de tudo, recuperarem sua auto estima. Ainda é uma luta da David contra Golias; do estilingue contra o canhão, mas é o primeiro passo. Acreditar na diversidade, no manacial de linguagens estéticas de nossa gente, no poder da cultura local como arma para enfrentar, discutir e compreender as informações impostas por modelos catequizadores. Fazer nossa gente acreditar que tão artistas e importantes quando os que aparecem nas novelas ou que vendem milhões de discos, sao os trovadores de feira, os dançarinos de catira, o capoeirista das praças, os que moldam o barro, etc...
Alguns anos atrás, na comunidade pantaneira de Mimoso em Mato Grosso, ouvi o querido e saudoso professor Carlos Reiners, o último comunista convicto do Pantanal, dizer para um grupo de alunos da pequena escola da comunidade onde ele ministrava aula: "Vocês tem de aprender a pensar. Quem pensa vai longe, quem não pensa não sai do lugar. Tenham suas pernas atoladas até o joelho no chão onde nasceram, mas na cabeça tragam sempre uma antena parabólica."
Mas como estamos num festival de teatro ( e que festival!!!), gostaria de mudar um pouco o rumo da nossa prosa. Tenho visto nesse festival, no meio da selva amazônica (900 km da capital Cuiabá), uma verdadeira farra estética. Espetáculos das mais diversas vertentes e tendências. Isso não é bom. E maravilhoso!. Quero parabenizar os organizadores e curadores dessa mostra. O público, que tem lotado todas as sessões, que foram sempre duas por noite, reagiu de forma muito favorável a diversidade de temas propostos pelas companhias convidadas. Confesso que tinha um certo receio da reação do público com relação à alguns espetáculos, mas felizmente me enganei.
Isso prova mais uma vez a velha teoria de que "Cachorro só come osso, porque não lhe dão filé".
Ainda sobre teatrro, quero deixar registrado algumas idéias e observações à respeito do trabalho que venho desenvolvendo na área.
Um texto do brilhante encenador português João Brites, do Teatro O Bando, no livro “Texto e Imagens: Estudos de Teatro”, de Maria Helena Wernek e Maria João Bilhante editado pela “Viveiros de Castro Ediora Ltda” do Rio de Janeiro em 2009, sintetiza em poucas palavras o que acredito ser um teatro contemporâneo:
“...O teatro não é uma exposição de ideias ou de conversas. A revelação de um conteúdo, de uma ideia, pode ser dada através da relação com o espaço, da corporalidade dos atores, das situações e tensões imagéticas implícitas ou explícitas e de muitas outras formas que ultrapassam o simples conteúdo das palavras ditas...”
Sinto-me um previlegiado por ter nesses últimos anos, acompanhado, partilhado e compartilhado com o João, do processo de estudo e desenvolvimento de uma dramaturgia a partir de textos literários. Foi por essa contaminação que comecei a buscar na literatura o teatro que queria fazer. Um teatro que pudesse transpor as barreiras das palavras, os limites do palco e as fronteiras das envelhecidas e gastas conveções estéticas. Um teatro que buscasse não repetir velhas fórmulas de representação, não apostasse no riso fácil e acima de tudo, que pusesse o expectador em desconforto diante do inusitado. Esse desconforto, advindo da uma forma desconcertante de estranheza, creio eu, faz com que espectador não saia impune do teatro. Partindo da ideia de que, a maioria das pessoas, vai ao teatro como quem vai à um jardim zoológico dar pipocas aos macacos, proponho a inversão do processo. Um dia eu ainda enjaulo o público.
Agora, aqui em Alta Floresta parcipando do Festival de Teatro da Amazônia Mato Grossense, tenho a oportunidade de reapresentar o meu espetáculo solo "Cafundó – Onde o vento faz a curva", na cidade e presenciar a estréia de "Cidade dos Outros" da Cia Pessoal de Teatro de Cuiabá , que acabei de dirigir.
Lembro-me que ainda em Portugal em Setembro do ao passado, Juliana Capilé, diretora da Cia me enviou um e-mail me convidando para tal empreitada. Respondi a ela que naquele momento ela corria muito risco. Eu acabara de encenar "Viver é Raso" para a Cia dos Actores de Oeiras, para o Festival MITO.
Tinha levado "O homem e o cavalo" de Oswald de Andrade e já havia começado os ensaios quando tivemos problemas com a familia do autor. Em tres dias escrevi o "Viver é Raso" e apresentei ao elenco que de cara topou saltar no abismo comigo. Espetáculo niilista onde experimentei pela primeira vez a dramaturgia do silêncio, do vazio, do não representar e estava totalmente contaminado com a experiência. Gostaria de lembrar que nesse trabalho, a forma que encontrei de "desconfortar" o espectador , foi tratá-lo com ovelha. Coloquei um pastor com cachorro e tudo pra colocar o público para dentro do teatro como se fosse um rebanho de ovelhas a ser encurralado aos gritos e latidos. Ao final do espetáculo, a mesma forma para tirá-lo do recinto. Todos tinham de trazer uma grande pedra nas mãos e na porta de entrada, atirá-las pra dentro de um tambor de lata.
Também no meu último filme, "Horizontem", um curta-metragem, eu já havia experientado essa linguagem.
Público e artistas presentes na estréia do espetáculo "A Cidade dos Outros" , no Festival de Alta Floresta, reagiram com bastante estranhesa à estética proposta. Isso me foi muito interessante. Na verdade, não esperava outra coisa. Um espetáculo cuja história não se define e os silêncios muitas vezes falam mais que as palavras. Um rodar em círculo, como uma cobra mordendo o proprio rabo, sem início, meio ou fim. Um bater na mesma tecla intermitente. Pra quem está acostumado a ir ao teatro ver e ouvir narrativas convecionais, lineares e com plots e desfechos definidos ou contundentes, foi realmente um choque, ou no mínimo, um não sei o que é isso que estou vendo. Todos voltaram pra casa com um insetozinho zumbindo na cabeça e muitas perguntas. Creio que ajudamos o pessoal a pensar.
Arte pronta, oca e estéril, já tem muita gente fazendo. O quanto mais pudermos fugir desses conceitos reusados e fáceis e enveredarmos por caminhos nunca dantes desbravados, mais ajudaremos David nessa luta contra o forte e inescupuloso Golias.
Poderemos nunca derrotá-lo, mas vamos causar-lhe alguns bons estragos.

"Essa estranha mania de querer ser o que somos, ainda nos levará muito longe"
(Paulo Liminski)



Alta Floresta-Chapada dos Guimarães-Palmela(Portugal)
Abril de 2010

Amauri Tangará